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a cidade

Por Renato Carvalho Intakli

Há um pouco mais de 100 anos, um grupo de operários do bairro do Bom Retiro, em São Paulo, praticou um ato de “desobediência civil”. À luz de um lampião, na esquina das ruas José Paulino e Cônego Martins, os insurretos decidiram criar um time de futebol do povo e para o povo. A primeira aquisição do clube foi obviamente uma bola. Com seis mil réis arrecadados com moradores do Bom Retiro, o tesoureiro João da Silva fez a compra em uma loja da Rua São Caetano. Os primeiros jogadores do Corinthians, entre eles Amílcar e Francisco Police, defendiam a Associação Atlética Botafogo, time de várzea do Bom Retiro que foi fechado pela Polícia um mês antes da fundação do alvinegro. Estava ai, o ainda chamado Corinthian Football Club foi o exílio daqueles que não tinham vez dentro do refinado mundo dos clubes de futebol.
Muito petulantes, já meteram a mão em foices para abrir uma cancha num terreno baldio, pertencente a um rico lenheiro do bairro que alguns meses depois, vendeu o terreno por um preço irrisório. E, no primeiro jogo, contra o União Lapa, saíram em passeata até o palco da contenda. Mas como passeata? Passeata, sim senhor, porque essa gente era, sobretudo, anarquista com a graça do bom Deus.
Nosso primeiro presidente, o ítalo-brasileiro Miguel Battaglia, por exemplo, tivera contanto com o anarcossindicalismo ao prestar serviços para a Light. É dele a frase cândida, mas também desafiadora, que guia a nação alvinegra até hoje: “Este é o time do povo, e é o povo que vai fazer o time”. Essa turminha do barulho lia o jornal anarquista de Gigi Damiani, o La Battaglia, que exortava os trabalhadores a fundarem suas próprias escolas e agremiações esportivas. O time dos anarquistas não tinha bagunça, cada um sabia das suas atribuições, cada um assumia uma responsabilidade, conforme o que se aprendera de Bakunin e Malatesta. E assim se estruturou!
Atrevidos, esses operários decidiram que a nova agremiação não deveria se contentar com a várzea. O plano era formar um esquadrão para enfrentar, de igual para igual, os clubes da fechada elite paulistana. Em 1913, conquistam o direito de participar da divisão principal do futebol paulista. Ao mesmo tempo, o Paulistano (futuro SPFC) e a A. A. das Palmeiras (nada a ver com o atual Palmeiras), enojados do cheiro do povo, se retiraram da liga e resolveram disputar um torneio paralelo. Começava ali uma história de ódio. A imprensa questionava a presença de um time de iletrados no mundo do chiquérrimo futebol, um jogo inventando por lordes ingleses. Quanta petulância!
E para acirrar ainda mais os ânimos, o time dos anarquistas admitia gente de todos os tipos. Logo agregava os negros, os mulatos, os caboclos e outros filhos da terra. Mais um pouco e atraía também os outros segregados, polacos, libaneses, alemães, sírios, japoneses, italianos anti Matarazzo, espanhóis, judeus e gregos, gente que somente se entendia na alegria de torcer pelo Corinthians. Imaginem o escândalo: um time de anarquistas, negros, imigrantes e boêmios invadindo as elegantes festas do Velódromo.
Com o tempo esses garotos bons de bola começaram a acumular títulos, e provaram que os tais descamisados eram melhores no trato com a pelota do que aquele punhado de fraldinhas
que cresciam nos Jardins. E isso acirrou ainda mais o ódio da carcomida elite deste país. Essa se mostrou extremamente incomodada com a ascensão do time do populacho. Imaginem só! Que descaramento dessa gente, além de invadir nosso fechado mundinho ainda se põe a ganhar títulos.
No entanto, a horda de fanáticos não se contentou apenas em enfrentar a elite paulistana, em cinco de dezembro de 1976, o maior e mais surpreendente evento da história do futebol brasileiro (e talvez do mundo) acontece em pleno Maracanã: mais de 70 mil torcedores corintianos saem de São Paulo e lotam as arquibancadas do estádio para apoiar o Corinthians. Segundo a historiografia, esse evento pode ser caracterizado como a maior movimentação humana em tempos de paz da história da humanidade. Ele foi marcado pela afronta que Francisco Horta, então presidente do Fluminense, cometeu ao subestimar obstinada torcida alvinegra com sua declaração: “Que os vivos saiam de casa e os mortos saiam das tumbas para torcer pelo Corinthians no Maracanã, porque o Fluminense vai ganhar a partida”.
A Ditadura seguiu durante 20 anos, nesse período poderíamos ter deitado na carne seca, qual o ditador não gostaria de um apoio como o Corinthians para afagar os ânimos da população, no entanto a pertinácia foi maior do que a promessa de títulos e um estádio. Não se rendeu, e formou a maior resistência política da história do futebol, a Democracia Corintiana. Nesse período, enquanto o Corinthians amargava jejum de títulos e altos preços para locação do Pacaembu o futuro governador do Estado de São Paulo e na época presidente do SPFC Laudo Natel levantou no bairro do Morumbi o que seria o maior estádio privado do mundo.
Passaram-se 100 anos e nada mudou, o Corinthians continua sendo alvo preferencial da mídia monopolista. Se o grande São Paulo Futebol Clube recebe do governador do Estado de São Paulo Adhemar de Barros, sócio da imobiliária Aricanduva que em 1950 arrendou junto à prefeitura uma gleba de terra de 2.333.916 m² na região oeste da cidade, um terreno de 154.904 m² para a construção do seu estádio. Que dez anos depois foi acusado de ter obtido a verba para tal compra quando era Governador do Estado por empréstimo ilícito (todavia, nada fora provado contra sua ação no Tribunal de Contas do Estado, o julgamento ocorreu no obscuro período da ditadura). Agora, o que ocorreu no período da construção do Morumbi, não há nada de errado. É a ordem natural das coisas. Mas se um banco público vai financiar a “pretalhada”, os “gambás”, aí é uma vergonha.
Se a ordem é investir dinheiro público no rico bairro do Morumbi, a imprensa sorri de orelha a orelha. Mas se a grana toma o rumo de Itaquera, na esfolada Zona Leste, já vira um caso de polícia. Estadão, Folha, Abril, Globo, ESPN, entre outras organizações midiáticas aproveitaram para criminalizar mais uma vez a paixão do time do povo e usa Lula como bode expiatório. Está aí um prato cheio para colunistas políticos travestidos de colunistas esportivos: juntou o time dos anarquistas, do populacho, com o operário nordestino que se meteu a ser presidente… Ai, não dá né?
Se o Corinthians ainda existe é por conta da brava resistência ao preconceito. Pois tudo lhe foi sempre negado ou dificultado. A mídia paulistana sutilmente construiu um estereótipo desabonador do corintiano: é o ladrão, favelado, sem modos, sujo e vagabundo. E mesmo criminalizado o Corinthians sobreviveu, e se fortaleceu. E criou um espírito de resistência solidária entre os oprimidos, ofendidos e injustiçados.
Aqui, no baixo Tatuapé na margem do Tietê, os fogos estouraram durante toda a madrugada. Subiam dos quintais de cortiços, das janelas de apartamentos minúsculos, de ruelas esquecidas e escuras, dos galpões de fábricas abandonadas, dos lugares onde o povo do Brasil ainda resiste, invisivelmente. Ah! Quanto ódio, meu Corinthians, mas quanta amorosa resistência! E nós sabemos que dentro de cada coração corintiano, mesmo que esteja bem guardado, ainda existe aquela petulância dos velhos anarquistas paulistas de 1917, e é exatamente por isso que vestimos preto, e com o punho esquerdo cerrado mirando os céus agradecemos por ser corintiano, maloqueiro e sofredor.

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